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quarta-feira, 5 de maio de 2010

19:30hs


Esses dias Constança me chamou para a troca de ficha dela no NA, 24 anos sem beber uma única gota de álcool (imagina a sede rs) ou usar qualquer outra droga.
Falei que iria e esperei que ela esquecesse o assunto.
Não esqueceu.
Me ligou na data marcada perguntando se eu ia querer carona ou estava com o Ronaldo
Disse que era folga do Ronaldo, mas que ia dar um jeito
Na verdade fiquei pensando em um jeito de dar uma boa desculpa, mas nenhuma boa desculpa é boa o bastante para ela rsrsrs nunca.
Lembrei do dia em que falei para o meu pai e para o Xu que não iria mais as reuniões e do alívio que senti
Durante muito tempo às 19:30hs eu ainda me lembrava que era hora da reunião, aos poucos fui parando de lembrar
Fiquei me perguntando por que a idéia de ir a uma reunião estava me causando tanto desconforto e não foi difícil responder
Não foi fácil cortar um habito tão antigo, não foi fácil dar os primeiros passos sem as pessoas com quem eu tinha vivido por tantos anos e não foi fácil me sentir livre das regras que para mim, pareciam uma condenação eterna.
Mas afinal são 24 anos e sei quantas vezes ela deve ter pensado em jogar tudo para o alto, talvez esse tenha sido um dos anos mais difíceis tirando o primeiro quando tudo é tão novo e assustador.
Brinquei varias vezes falando que ela podia fumar maconha já que é recomendado para aliviar o enjôo da quimioterapia (brincava só brincava) e que ela nem estaria “recaída” estaria receitada rs
Mas ela ficou lá, firme.
Fiquei em um dialogo interminável comigo, tentando ver todas as possibilidades
Algum chato vai sentar ao meu lado e perguntar se estou “limpa”
Tudo bem eu mando a merda
Algum outro chato vai perguntar se voltei
Tudo bem eu respondo que estou passeando
E se acharem que estou dando o braço a torcer?
Oi?
Mas que diferença isso tudo faz?
Não faz nenhuma
Mas a Constança faz diferença na minha vida, mesmo quando tenho vontade de apertar o pescoço dela (não sou poucas essas vezes)
Resolvi ir
Fui chegando perto do prédio, meu coração começou a disparar.
Comprimentei o porteiro (não era o mesmo dos meus tempos) e o dedo foi automaticamente.
Segundo andar
O mesmo caminho que fiz por tantos anos, ia chegando perto da sala e meu coração batendo cada vez mais forte (só me faltava infartar e morrer lá, eu não me perdoaria nunca por isso rs)
Não sei explicar direito o que senti vendo tantos rostos familiares e lembrando a importância de cada um deles na minha vida
Bom, posso falar nomes por que não existe só um José no mundo então não da processo, me certifiquei disso na época do livro rs
Vi o Gui (vi quem estava ao lado do Gui rsrsrssr, vi bem) lembrei dos famosos patês de foie gra que ele faz
Vi o João, meu primeiro namorado na minha primeira internação (o primeiro de muitos corações que eu parti lá dentro rs)
A Leonor e o Marco Antônio (não da para falar o nome de um sem complementar com o do outro) é assim que me lembro deles, sempre juntos
Como me ajudaram, tiveram tanta paciência...
Leonor sempre amorosa, mas durona ficou com a Julia uma noite quando tive que resgatar um “namorado” desviado
Marco que sempre levou tão a sério e como brigava comigo quando eu tentava (conseguia) tumultuar as reuniões administrativas
A emoção dos dois sempre
Adriana, que me levou para uma clinica em que não fui aceita uma vez rs
Paulinho que tive um namoro rápido (com ele e com o irmão, mas não ao mesmo tempo rs)
Vi o estrago que as drogas fizeram na aparência de algumas pessoas que provavelmente ainda não conseguiram, mas que continuam tentando.
Vi a Leila minha prima querida
A margarida que azarava o Xu na minha cara, mas eu não me dava ao trabalho rs ela não era páreo nunca foi
Fiquei indignada depois que falei com ela, já que tinha esquecido que estava brigada, droga rs
As pessoas falavam e eu nem conseguia ouvir bem, só conseguia ouvir minhas lembranças
Nossa eu era uma menina, meu pai tinha me colocado para fora de casa e a condição para voltar era ir ao NA
Cheguei com um urso de pelúcia e fiquei sentada na janela, deixando os mais rígidos indignados com a minha falta de respeito
Já levei cachorro para a reunião, claro que isso não é permitido e claro que eu sabia disso
Levei mesmo assim.
Vi o Evandro que sempre esteve lá, desde a primeira vez que cheguei. Sempre me olhando com olhar de reprovação mas também amoroso cada vez que meu celular tocava(tem um aviso pedindo para desligar ,eu nunca desliguei)ou que eu falava no meio das partilhas
Quantas coisas vivi ali dentro...
Eu tinha só 18 anos e fiquei por muito tempo
Minhas filhas nasceram lá.
Minha mãe morreu
Chorei com aquelas pessoas, também comemorei
Senti falta das pessoas que não estavam mais, não estavam mais nesse mundo, mas que me ajudaram a continuar.
Finalmente o coração foi voltando ao ritmo normal ufa, eu não ia morrer ali dentro rs e então consegui prestar atenção no que as pessoas falavam
Me emocionei ouvindo a Constança falar
Torci por um menino que acabava de chegar
E fui percebendo como minha vida havia mudado como eu mudei.
Hoje a droga não é um problema nem um fantasma na minha vida, não tenho uma luta diária a ser travada contra ela
O tempo passou, eu não sou mais a menina sentada na janela com o urso de pelúcia
Me transformei em uma mulher, cheia de bagagem, mãe (ainda não consigo ser filha) com muitas manias e poucos limites
Me transformei em uma pessoa livre, livre até para cometer erros
Mas definitivamente, não tenho problemas com drogas
Desde a primeira matéria que saiu falando sobre o livro e tive as palavras um pouco distorcidas, que tomo muito cuidado cada vez que falo sobre NA, seja em uma entrevista qualquer ou com as muitas mães que me pedem alguma ajuda


Sempre deixo claro que não levanto bandeiras e que não faço parte do NA
Sentada naquela sala, vi que realmente não faço mais parte
Não por que não uso ou por que resolvi que não voltaria a uma reunião
Não faço parte porque não estou ali participando das dores e alegrias de cada uma daquelas pessoas
E de qualquer forma é bom saber que sempre terei um lugar para correr, mesmo que hoje eu não precise mais correr
Mas o mais importante, foi que descobri que algumas pessoas e a sala no segundo andar do prédio da igreja, vão fazer parte da minha vida para sempre
Essa é a minha historia
Aprendi com cada um dos rostos que revi a ter respeito pela minha historia.
É só uma parte dela claro, mas uma parte que fez muita diferença
Voltei a lembrar que ás 19:30hs um grupo de pessoas esta reunido tentando e conseguindo o mesmo objetivo
Largar as drogas e levar uma vida nova na sociedade
E cada uma dessas pessoas vai ter sempre o meu respeito e admiração, porque não desistiram da vida
E de alguma forma isso ainda me mantém ligada a elas,
Cada um escolhe seu caminho, suas alternativas e é isso
Sentada aqui escrevendo, olhei em volta e me senti tão agradecida
Agradecida as pessoas que não me deixaram desistir, as pessoas que não me deixaram morrer, mesmo quando isso parecia inevitável
Agradecida pela vida que levo, pelas conquistas que fiz e principalmente por viver
Viver cada dia e continuar sentindo tanta vontade de viver mais e mais todos os dias


Ps Eu confesso ,sempre me mantive a par das fofocas ,quem tem informante tem tudo rs